quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Viagem à Índia

Na Índia, a sobrevivência a condições climatéricas marcadas por altas temperaturas e por excesso de humidade, reflecte-se também na cozinha.

O uso das especiarias tem um papel determinante. As malaguetas e o alho, desinfectantes naturais, alargam o período de vida útil dos alimentos e, quando isso já não é possível, protegem o organismo do ataque bacteriológico provocado pela decomposição dos produtos. Os aromatizantes, aliados indispensáveis, ocultam, dissimulam e corrigem os sabores e aromas característicos dos alimentos deteriorados. O uso das especiarias é também uma forma de proteger e combater as bactérias, doenças e infecções que viajam no ar em grandes quantidades.

Em cada região cultiva-se todo o tipo de malaguetas, de tamanhos, cores e sabores diferentes, que vão desde a chamada malagueta "olho dos pássaros" (dhane) de sabor acre, originária de Mizoram e de algumas zonas de Manipur, até à muito picante Sangli sanam, da zona de Maharasta, passando por variedades de Cachemira, como a Mandras pari. São o ponto de partida de um impressionante percurso que reúne todos os graus de picante que a natureza proporciona.

O culto das especiarias chega ao ponto de incorporar no receituário produtos tão sigulares como a assa fétida (uma resina vegetal que se destaca pelo seu mau odor) ou tão curiosas como o bétele (semente de uma palmeira), as sementes de pepino amargo, as sementes de carambola ou a manga em pó.

Qualquer planta, raiz, semente, rama, casca, bolbo, fruto ou hortaliça que caia nas mãos dos indianos é transformado em condimento culinário. Em qualquer dos casos, existem especiarias de categoria superior que estendem a sua presença a grande parte do receituário.

O gengibre fresco (raiz), juntamente com o cardamomo, os cominhos, as sementes de coentro, o cravo, ou a canela. Em conjunto com estes surge o feno grego, a noz moscada, a espectacular pimenta preta, a menta, a hortelã, as sementes de mostarda e o tamarindo (a Índia é a primeira exportadora de tamarindo a nível mundial).

E, acima de todos os outros, os corantes mais usados por todas as cozinhas do país: o açafrão e a curcuma.

E falta o curry. Os hindus chamam curry ao estufado. Pode ser de legumes, e chega à mesa consideravelmente temperado com especiarias, como o resto da cozinha indiana.

Algumas das etnias estabelecidas no sul do país chamam kari aos molhos e é possível que seja daí que os britânicos tenham adoptado o nome do molho ou condimento que levaram de regresso a casa.

Trata-se de uma versão da masala, uma sábia mistura de condimentos, ervas e plantas aromáticas que pode incluir até trinta ingredientes diferentes e que, apesar de preparar-se de forma diferente em cada lar do país, constitui um dos traços da identidade da cozinha indiana.

Entre as masala destaca-se a garam masala (à letra "especiarias picnates"), que se prepara tostando todas as especiairias e que se costuma juntar ao preparado nos últimos minutos da confecção.

Na realidade, cada prato, cada tipo de guisado tem uma combinação de especiarias atribuída, uma proposta básica, a partir da qual se desenvolvem centenas de fórmulas diferentes. Acontece com a tikka (técnica de cozinhar na grelha) ou com o tandoori, eixo do ramo mais popular do receituário local, baseado no uso de um forno de argila chamado tandoor, técnica em que a carne ou o peixe são marinados com iogurte antes de assados.

É necessário falar do panch, mistura característica da cozinha bengali, ou do paan, uma simples combinação aromática de propriedades digestivas, para "recuperar o fôlego" e que se mastiga o terminar a refeição.

Os indianos convertem em especiaria, tempero ou condimento tudo o que apanham à mão. Também utilizam, de modo particular, os produtos lácteos, aos quais o hiduísmo adjudica um considerável valor, enquanto elemento capaz de reforçar a espiritualidade do indivíduo. O facto é que a presença do raita, a ghee e o panir se estende ao longo de toda a gastronomia.

É possível que o mais importante de todos seja a ghee, manteiga que utilizam para fritar e como condimento, mas também não seria de estranhar que a primazia fosse atribuída ao raita, molho de iogurte misturado com especiarias e produtos vegetais, que surge em muitos pratos para mitigar o efeito do picante.

Por fim, encontramos o panir, um dos produtos mais utilizados pela cozinha hindu, a meio caminho entre o requeijão e a coalhada que ainda se prepara em casa. Em conjunto com este está o Koya, o paradigma que exibem de algum tempo a esta parte as vanguardas culinárias europeias: o leite coagulado (a modernidade chama-lhe texturizado), criado com uma técnica milenar e que surge tanto em sobremesas como na elaboração de alguns tipos de curry.

Nem sequer as lentilhas e o grão de bico, chamadas dal e chana, respectivamente, os dois grandes legumes da despensa hindu, escapam à tendência geral. Contribuem com o seu sabor, convertidos em farinha, tanto em guisados como em panados, mas, especialmente, em algumas das fórmulas utilizadas para fabricar os pães indianos: os rotis e os nan. Estes pães ázimos podem adoptar formas tão diferentes como a do cahapati, a mais popular.

Os pães hindus abrangem uma gama que vai, precisamente, do tenro e suave chapati, aos estaladiços rumali roti, lâminas muito finas de pão estaladiço preparado na chapa, passando pelos tenros e esponjosos nan, de forma triangular.

A reunião de frutas, hortaliças e ervas aromáticas dá lugar a duas famílias de molhos diferentes. os emblemáticos chutney e os achars. Não é fácil conceber uma mesa indiana sem a presença do chutney, o molho agridoce por antonomásia. É preparado com frutas e tantas especiarias quantas o seu criador for capaz de unir. Cada colherada abre a porta de um sabor novo e surpreendente, nascido em combinações habitualmente preparadadas em cada casa. Podemos encontrar muitos tipos, elaborados sobre uma base de tamarindo, côco, tâmaras, tomate ou menta, ainda que o mais popular seja o de manga.

Alguns destes tipos dão lugar a combinações como as de iogurte e tomate, que escapariam à classificação inicial.

Por sua vez os achars são parentes dos nossos escabeches. Trata-se de hortaliças ou frutas confitadas num suco de vinagre.

Fonte: Cozinha País a País, Jornal O Público, vol.20 - Índia

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